Linda foi a primeira a começar a rir quando o sol finalmente começou a aparecer:
-Ele existe, ele existe! - exclamou animada com a revelação.
Sneer e Sofia olharam sorrindo para ela. O garoto fechou os olhos e deu uma longa tragada no baseado em sua mão, sentindo sua consciência ficar extremamente leve, ao ponto de seu cérebro voar livremente. Em seguida apanhou algumas das pílulas coloridas e engoliu-as com a ajuda do suco. Suas células se agitaram animadas, prontas para uma orgia meiótica, a polarização dos mais insignificantes átomos em seu corpo eram palpáveis. A última coisa da qual teve convicção era de que Sofia fazia o mesmo.
Quando voltou a olhar para o horizonte a coloração deste era de fazer inveja aos trajes do garoto. O cheiro do mato ao lado aflorava seus poros. O som do mar distante parecia querer dizer-lhe algo. Podia sentir a felicidade grudar em sua pele.
Um estrondo soou em algum lugar e ao longe dois pontos se destacaram na infinidade de cores. Se aproximavam lentamente e quando se tornaram distinguíveis, Sneer saudou-os:
-Pikachu!
O pokémon travava uma dura batalha contra um sapo cor de rosa que insistia em declamar poemas enquanto era atacado:
-Amor é palmeiras onde canta Margareth
e quanto do teu sal são das nádegas de Elizabeth?
Sneer perdeu-se numa risada infinta, não fazia esforço algum para se conter. Seus orgãos haviam trocado de função em seu corpo de modo que ele não sabia mais qual era o modo correto de utilizá-los. Riu tanto que acabou por metamorfosear-se numa minhoca azul.
Encontrava-se repleto de aneis pelo corpo inteiro e seus braços haviam grudado no corpo, suas pernas se juntaram e ele saiu rastejando na direção de Linda. Ao menos era um azul bonito.
A ruiva dançava freneticamente. As luzes piscavam leves e ariscas em verde, azul, vermelho, roxo, laranja, rosa e verde de novo. Procurou Sofia no meio daquele caos luminoso. Sentia uma vontade salgada, ou talvez alaranjada, de beijá-la. Contudo por mais que seus olhos saíssem em busca da morena, nada conseguiam encontrar.
Quando conformou-se com seu desaparecimento, uma família de tomates veio em seu socorro:
-Let me take you down
´Cause I´m going to
Strawberry Fields
Nothing is real
And nothing to get hung about
Strawberry Fields forever – cantarolavam em unissono.
-AC/DC, legal! - comentou a ruiva. Mas antes que pudesse desviar os olhos uma duvida assolou-a – Por que vocês estão indo para os campos de morango se são tomates?
-Por que não? - respondeu o tomate de aparencia mais respeitável. Trajava um terno marrom um pouco surrado, e oculos meia-lua.
-Por que vocês são tomates e não morangos! - aquilo decididamente não estava certo. Era como torcedores de um time irem prestigiar o jogo do time rival, comprarem camisetas dele e ainda cantarem seu hino.
-E dái? - respondeu uma voz feminina. Sua dona era uma tomata muito atraente, de curvas bem definidas e de vermelhidão invejável.
-Morangos são doces, tomates salgados – começou Linda, com uma didática forçada – Não combina! Vocês não podem se misturar, sinto muito, mas não da certo! A física deve explicar isso melhor que eu.
-Então você nos julga? Nos rotula? Nos diz o que devemos fazer e o que não devemos? Escolhe para nós o que é o certo e o que é o errado? Por acaso já lhe passou pela cabeça que temos cérebro e podemos decidir o que é bom ou não para nós? - interveio um tomate revoltado e com um vistoso moecano verde e coturnos engraxados.
Na verdade aquilo nunca havia se passado pela cabeça de Linda. Tomates não pensavam, ela pensava. Foi o que tentou verbalizar com um grito histerico:
-Vocês são tomates e tomates não pensam!
Sentiu-se ruborizar.
Sua ira foi recebida com uma risada superior:
-Você que pensa! - corrigiu o tomate mais velho – haverá uma festa nos campos de morango, e acho que a esse ponto você já pode se a juntar-se a nós.
O convite fez os olhos da ruiva brilharem. Não era todo dia que um ser humano tinha a chance de conhecer a famosa “Festa Vermelha”. No entanto, ela não poderia para de dançar, seu corpo precisava daquilo. Os desejos da carne acabariam por ser mais relevantes que os do espírito. Teve que se desculpar-se:
-Sintou muito Sr. Tomate, eu não posso parar de dançar.
-Você pode ir dançando – sugeriu a tomata mãe.
E Alice partiu junto com os tomates rumo aos campos de morango.
Música: Strawberry Fields Forever - The Beatles
Meyer foi o último a atingir o topo da rocha. Tivera sérias dificuldades para escalá-la, mesmo sendo essa de fácil acesso. Suava como um porco e o rosa da sua face havia se intensificada demonstrando claros sinais de cansaço. O suor escorria pelos seus cabelos sedosos.
Os cinco olhavam sonhadoramente para o horizonte. Cada um sustentava sua prórpia utopia e a única certeza era a de que em todas elas aquele lugar paradisiaco estava presente. A rocha se erguia acima do bosque e de lá se via primeiramente um mar verde de árvores; posteriormente um azul anil de água e sal. Entre eles um extenso muro cinzento que os cinco fizeram questão de ignorar.
Lyla suspirou. Ele não viria afinal. A onisciência, onipresença e onipotência de Johnny haviam se provado falhas. Uma pena, pois algo bem no fundo de sua alma desejava que ele estivesse ali. Esticou uma toalha vermelha de pique-nique e retirou os lanches e sucos de sua bolsa; ainda não estava com fome, contudo, julgou que não demoraria muito para que essa situação mudasse. O sol ainda nem nascera.
Sneer já havia se sentado. Segurava um baseado recém acendido enquanto se perdia em seus próprios pensamentos. Aquilo era lindo para caralho. Olhou para Lyla, seus cabelos brilhavam na até então escuridão; ela amava Johnny. Para Sneer aquela era uma luta perdida, sempre fora. Talvez, no entanto, não tivesse que lutar. A solução veio sentar-se a seu lado:
-Um trago? - Pediu a voz doce de Sofia.
O pedido foi imediatamente atendido. Sneer pegou a mão da menina e ficou passeando com seus dedos pelo braço dela, parando lentamente quando se aproximava de uma das várias pintas.
Quando Linda juntou-se a eles a eles já havia se entupido de pilulas. Pediu o cigarro à Sofia e quando a morena entregou-o recebeu em troca um afago provocante nas pernas descobertas.
Sofia fechou os olhos, o que não era uma atitude muito sensata tendo em vista o espetáculo que se erguia diante deles. De seu lado esquerdo estava Sneer acariciando carinhosamente seu braço. Do direito Linda, com a mão perigosamente em suas cochas. Já não podia escolher, não queria escolher, não iria escolher. Talvez fosse melhor assim.
Música: Juicebox - The Strokes
Quando os outros quatro já estavam suficientemente distantes Sneer se dirigiu para o salão do refeitório. O azul estático da televisão logo deu lugar ao velho de tapa olho:
-Baddy Teddy! - cumprimentou o garoto
-Quando deixou de me chamar de vovô?
-Quando começamos a tratar de negócios – disse rispidamente – vou resolver aquele nosso problema.
Devaneou por alguns instantes enquanto o velho o observava satisfeito. Sua mente foi parar no verão passado. Ele e o avô num quarto da mansão dos Aleksander, o tempo era curto. Jogavam xadrez, o homem havia iniciado o menino no jogo e desde então a criatura ainda não fora capaz de vencer seu mestre. Contudo as coisas pareciam estar para mudar. Baddy Teddy fez sua jogada e sorriu certo de ter o jogo em suas mãos. Quando a idade chega não nos preocupamos mais em variar aquilo que já é certo até que este deixe de sê-lo, mas ai pode ser tarde demais:
-Três milhões. Ano que vem nos vemos no St. Jimmy – o tom era de despedida.
Sneer finalmente se dera conta do que fazer para virar o jogo. Moveu uma peça e a situação se inverteu, porém não teve tempo de dizer as palavras mágicas. Um estrondo revelou que a porta havia acabado de ser arrombada, o velho supostamente já estava morto e enterrado num luxuoso cemitério há poucos quilometros dali. Seria no mínimo estranho se ele fosse pego vivo e jogando xadrez com seu querido neto.
Desde então a boca do garoto formigava para dizer aquela frase. Agora finalmente o momento chegara:
-Xeque-mate – e tirou a franja dos olhos amendoados, podendo ver melhor o cano de uma arma estourar os miolos do ancião indefeso.
Sneer abandonou o refeitório e se encontrou feliz e incrivelmente leve com as garotas na altura do bosque. Elas contaram que Meyer havia ido atrás de um curativo para o dedo. Minutos depois o garoto voltou e o grupo se encaminhou calado ruma à doce alienação.
Música: HAHA You're Dead - Green Day
-Eles vão esquecer, sempre esquecem – explicava Johnny – quando se faz merda é só dar um tempo que ninguém mais vai lembrar. Relevarão as coisas boas que você fez e perceberão que todo mundo erra. Ai precisam de você e vêm correndo te procurar. As coisas vão mudar, sempre mudam, ai minhas crianças precisarão de mim. Até lá é bom deixar eles pensarem que estão no comando. Ralar o joelho as vezes faz bem.
Andy ouvia sem muito interesse. Brincava com a barba que tomava conta de sua face. Já fazia duas semanas que comia mal, dormia mal e não tinha qualquer contato com o resto da escola. Preso nas profundezas daquele bosque, a vingança, pura e venenosa, começava a tomar conta de seu sangue e de sua cabeça cada vez mais intensamente. Estava tão cego que nem percebeu que Johnny parara de falar. Somente quando os passos incertos tornaram-se nítidos é que ele voltou à realidade. Olhou para o garoto pálido que já estava pronto para atacar o possível visitante. Posicionou-se também.
Quando a cara mediocre de Charlie apareceu o Johnny saltou determinadamente para cima dele, derrubando-o e festejando:
- Hey Charlie! You're the banana king!- comemorava enquanto o menino sentava-se assustado – como nos achou seu grande merda?
-Os pássaros estavam sobrevoando essa área da floresta, imaginei que vocês tivessem matado algum animal para comer e a carcaça ficou largada, atraindo os abutres – explicou-se.
- Você é esperto – concordou Johnny – mas não matamos nada. Temos comido apenas frutas, será que você não consegue arrumar alguma coisa pra gente?
Charlie abriu a mochila e de um bolso tirou alguns cereais, salgadinhos e bolachas. De outro tirou um pacote, que julgava conter maconha, e uns isqueiros:
- Isso foi o que Sneer deixou sobrar de seu estoque – relatou.
- Charlie! - gritava Johnny visivelmente feliz; voltando a si concluiu – aquele maconheirinho safado – havia carinho em sua voz – e Lichba, como vão?
-Vamos bem, mas ela tem um recado: roubaram o elemento X. Ela está desesperada, se culpando.
-Isso é sério – de repente a alegria de Johnny se esvaíra – mas fale que não é culpa dela. Quanto a você, fique de olho, cinco alunos podem não acordar qualquer dia desses.
Charlie e Andy se assustaram com a previsão. Johnny tinha o péssimo hábito de acertá-las. Percebendo o temor que causara, o garoto resolveu mudar o assunto:
-E os cinco mosqueteiros, como vão?
-É... na verdade os mosqueteiros eram três. Mas parecem bravos com você de qualquer jeito – revelou.
-Cinco, três. Dois números ímpares, primos e fazem parte da sequência de Fibonacci; todo mundo confunde – isso no entanto, não era bem verdade. Acendendo um cigarro voltou sua atenção para o assunto importante – um dia eles entenderão que os fins justificam os meios – deu uma tragada melodramática – Maquiavel disse isso.
- Na verdade ele não disse – corrigiu Andy.
-Pois deveria, é algo muito sensato a se dizer – e continuou a se divertir com o cigarro, como um gato com um novelo de lã.
-Tem mais uma coisa – anunciou Charlie – vai ter uma festa. Não sei onde, nem quando, é tudo segredo. Somente quem descobrir o local e a hora pode ir; na escola está cheio de pistas, como trevos e bandeiras verdes e azuis. Ninguém entende nada.
- Se eles quiserem esconder a festa é só ir pra a biblioteca – e Johnny ronronou como não fazia há muito tempo. – Quem está organizando?
- Linda, Sofia e Sneer.
- Que dia é hoje?
- 31 de março. Seis horas da tarde.
-Tem uma pedra que é o ponto mais alto dessa escola. É o único ponto do St. Jimmy do qual se pode ver a praia. Nos vemos lá daqui doze horas.
Nenhum dos dois ousou dicutir. Charile ainda deu um relato detalhado do triângulo amoroso entre Sneer, Sofia e Linda, da intensa variação de humor de Lyla, de como o resto dos alunos ainda estavam apavorados com a ameaça falsa da bomba e como levavam suas vidas miseráveis e previsíveis. Quando o menino finalmente voltou para o prédio principal Johnny desabafou:
-Ela me ama. - e deu mais uma tragada no cigarro.
Música: Big Yellow Taxi - Pinhead Gunpowder